O que falta no rock (e em nossas vidas)?

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Rafael Senra Coelho

A Fuerza ocasionalmente convida especialistas de diversas áreas para discorrer sobre o impacto da tecnologia nos seus campos de atuação. São pessoas que admiramos e acompanhamos. Por isso, é um grande prazer receber o convidado de hoje para compartilhar um pouco da sua perspectiva conosco.

Em primeiro lugar, passei o réveillon de 2019 para 2020 sozinho em casa. Uma experiência como essa parece não ter nada a ver com a típica matéria prima de uma crônica – gênero tradicionalmente dedicado a observações sobre a realidade exterior. Mas, agora, à luz de todas as fraturas que o coronavírus tem causado no tecido social do mundo inteiro, pensei em dedicar algumas palavras a esse pequeno acontecimento íntimo.

Porque eu estava só na ocasião? Bem, sempre tive problemas com as festas de réveillon. É como se me sentisse ainda mais introspectivo do que de costume. E, claro, o contraste desse estado de espírito com o que se passa no resto do mundo é gritante. Do lado de fora, o que se encontra em quase todo lugar é música alta (e geralmente ruim), pessoas cujo bom senso foi raptado pela embriaguez, e comidas com uvas passas.

Não foi a primeira vez que fiquei em casa na virada. E, em todas as vezes, me pego pensando algo como “você trocou o convite de fulano para ficar aí sozinho?”, ou “você se acha melhor que os outros para recusar a proposta de ciclana?”, e por aí vai. Esse negócio de culpa cristã parece estar no bisturi de todo médico mineiro no momento do parto. No interior de Minas, mesmo os ateus nascem católicos, e a sensação de ressentimento vem de brinde junto com o pecado original.

Entrevista com Sir Paul McCartney no Ronnie Wood Show


Mas, com firmeza, me sentei no sofá, acompanhado de uma lata de cerveja e do controle remoto da TV. Sintonizei em uma escolha que parecia não combinar nada com réveillon: um programa em que o baixista/guitarrista dos Rolling Stones, Ronnie Wood, entrevista o ex-beatle Paul McCartney. Não sei o que me deu para querer ver aquilo, sobretudo porque eu já tinha assistido essa entrevista há uns anos. Mas, seguindo uma silenciosa intuição, acabei por dar o play.

Wood e McCartney contavam anedotas e histórias de um período da música popular que é obscuro para a maior parte das pessoas de 2020: a virada da década de 1950 para 1960. Mesmo que Ronnie ainda não fizesse parte dos Stones no início (sua fama veio mesmo sendo guitarrista dos Faces, junto com um jovem Rod Stewart), ele vivenciou aquela época junto com Paul McCartney. É ainda mais curioso ouvi-los falar quando consideramos que, para muitas pessoas, o marco zero da música pop começa com as bandas dos dois. Pouca gente sabia que, antes de existirem artistas que tocam em estádios e que gozam de uma popularidade mundial, os jovens ouviam estilos como o skiffle, um gênero pré-rock’n roll, que, em vez de bateristas, tinha percussões feitas com tábuas de lavar roupa ou garrafas.

Skiffle” – Lonnie Donegan toca guitarra com sua banda em 1958


Eles conheciam os artistas e as músicas dessa época em profundidade, e começaram a trazer com entusiasmo diversas narrativas desse tempo. Para mim, parecia a sensação que tive ao ter contato com o filósofo grego Luciano de Samósata, um cronista que tecia saborosas histórias sobre diversos pensadores e historiadores da Grécia – só que com um porém: na contemporaneidade, não temos registro escrito da maioria desses nomes. Só sabemos que eles existiram, em muitos casos, por causa das citações de Luciano. São depoimentos de um mundo perdido.

Óbvio que, no caso dos artistas e canções citados por Wood e Paul, basta um google e encontramos todas as referências. Mas trata-se de um campo de atuação cuja memória foi quase que apagada do histórico mais imediato da cultura pop. Tirando alguns nomes, como Elvis Presley ou Chuck Berry, o ex-beatle e o stone pareciam falar de um outro mundo. Com uma ajuda da cerveja gelada que eu saboreava, fiquei cada vez mais fascinado com a sensação de anacronismo dessas histórias. E me encantei sobretudo com a falta de glamour por trás de todos aqueles nomes desconhecidos. Era como se eles narrassem histórias de operários dos bairros em que cresceram, em vez de se tratarem dos grandes artistas da música popular daqueles tempos.

Na verdade, a indústria cultural mudou muito, e, desde o período em que Ronnie e Paul alçaram o sucesso (na década de 60, quando Wood ainda fazia parte dos Faces), as regras do showbusiness tornaram-se radicalmente diferentes. Paul e os Beatles ajudaram (sem querer ou intencionalmente, dependendo do caso) a escrever essas regras. O fato é que, para o bem ou para o mal, os artistas deixaram de ser pessoas em cima de um palco tocando alguns acordes, e se converteram nos verdadeiros deuses do olimpo da era moderna.

Joan Baez tocando em Hamburgo, Alemanha, 1973.


As histórias que os dois contaram naquele programa me trouxeram reminiscências de um mundo menos maquiado, sem autotune e sem excesso de produção. Um mundo em que as pessoas se conectavam de maneiras mais reais e menos virtuais. Para exemplificar a sensação que tive naquele dia, tomo a liberdade de trazer uma declaração da cantora Joan Baez sobre a música atual: “Acho que o que falta hoje é senso de comunidade. Muita gente tem feito muita coisa boa, mas sem esse sentimento que nós tínhamos nos anos 1960, o sentimento que nos foi dado por Martin Luther King”.

Crescer em um mundo pré-internet foi uma experiência que valorizo bastante hoje em dia. Por um lado, foi uma época provinciana, em que a vida no interior podia as vezes parecer quase medieval, repleta de desinformação. Mas isso era compensado por afeto real, pelo pé no chão, por encontros reais, conversas intensas. Não havia celulares para que as pessoas se evadissem mentalmente dos lugares. Encontros com os amigos eram sagrados, pois não tínhamos outra alternativa de interação.

Antes da pandemia que está a mudar o mundo nesse exato momento, a maioria de nós se transformou em um monte de burgueses mimados. Tantas possibilidades de consumo fez com que nos fechássemos nos nossos nichos, e nos tornássemos indispostos para a diferença de opinião. Cada vez mais, a vontade era de dialogar com pares, e, mesmo nas ocasiões em que supostamente estaríamos entre “iguais”, nossa mente paranoica iria descobrir qualquer detalhe que permitisse rotular o outro como alguém “diferente”, para em seguida rejeitar o valor daquela companhia e desejar estar em outro lugar. No fundo, a vontade era a de estarmos apenas conosco mesmos. Bem, o coronavírus realizou esse desejo. Como no mote do livro “O Segredo”, em que você atrai o que deseja bem no íntimo.

Voltando ao réveillon, eu tive uma percepção do senso de coletividade que perdemos, só que ela não veio de maneira racional como a que descrevo agora. Fui tomado por uma emoção, ou uma comoção, na verdade. Coloquei para rodar alguns clipes dos Beatles, mas só consegui ver até a época do Rubber Soul. Quando entravam as faixas experimentais do Revolver e Sgt. Peppers, o sentimento se arrefecia. Logo descobri o porquê.

Os antológicos Revolver (1966) e Abbey Road (1969)


Ali era o ponto em que esse senso de coletividade, que achei tão fascinante na conversa entre Ronnie e Paul, começou a deixar de fazer sentido para os próprios Beatles. Foi o momento em que eles próprios se aburguesaram, na medida em que sofisticaram excessivamente seu som e tentaram se afastar dos padrões da música popular de outrora. Claro que, se você perguntar qual o meu disco preferido do quarteto de Liverpool, eu direi que é o Abbey Road – que representa o auge dessa sofisticação. Mas, desde o dia do réveillon, não tenho escutado tanto dessa fase mais aclamada dos Beatles.

Na época do Ie-ie-ie, John, Paul, George e Ringo jogaram com as regras de seu tempo, fizeram o som daquela época – apesar de trazerem, claro, uma originalidade natural que vinha com sua postura, o jeito de tocar e cantar, etc. Mas eles não tentavam ser iconoclastas naqueles anos iniciais; pelo contrário, eles sequer acreditavam que durariam muito na carreira musical (em uma entrevista de meados de 1963, o próprio Paul afirma que eles provavelmente teriam mais uns dois ou três anos de sucesso pela frente).

Hoje em dia, me sinto incomodado com o excesso de pretensão da maior parte dos artistas, até mesmo os independentes. Parece que, com cada música que cantam ou conto que escrevem, querem mudar o mundo de uma maneira lapidar. Todos querem ser iconoclastas. Certo, eu estou generalizando – mas é a sensação que tenho ao olhar para a contemporaneidade. Mesmo as obras que supostamente pareçam ser acessíveis em algum momento se revelam verdadeiros cavalos de tróia, trazendo em seu bojo um levante maior ou menor de ego inflado.

Plastic Ono Band (1970) e um de seus hits “Working Class Hero”


Vários dos próprios Beatles perceberam essa armadilha. A melhor tentativa de desarmar a bomba ególatra do quarteto foi Plastic Ono Band, primeiro trabalho solo de John Lennon. A letra de “God”, por exemplo, é o epitáfio definitivo de um mundo que morreu junto com seus sonhos. Canções como “Working Class Hero” representam uma tentativa de olhar para além do império que os próprios Beatles ergueram. É interessante considerar que, um ano antes de lançar esse disco, Lennon organizou um festival em Toronto, Canadá, onde ele tentou resgatar vários artistas dos anos 50 que estavam no ostracismo, gente como Chuck Berry e Little Richard, e apresenta-los para as novas gerações. Ele parecia mais conectado com um retorno ao básico do que em manter a grandiloquência da fase do derradeiro disco Abbey Road.

Enfim, com essa virada de ano, os eventos simbólicos que narro aqui me ofereceram uma visão repleta de sentido e de valor arquetípico: o lampejo de tempos em que os artistas não pareciam melhores que qualquer trabalhador ou operário. Esse ato de olhar o passado “à contrapelo”, como dizia Walter Benjamin, acabou carregando, em seu bojo, reflexões também sobre o presente. Penso que a melancolia que sinto em datas como natal ou réveillon não são à toa: envolvem o fato de que o discurso de união, fraternidade, caridade (e outros termos igualmente desgastados) é uma promessa que não se efetiva nos outros trezentos e tantos dias do ano. Os meios tecnológicos e as novas mídias nos tornaram muito mais individualistas e bem menos gregários.

É estranho finalizar essa crônica com uma constatação que parece mais paralisante que propositiva. Mas, nessas horas, sempre tento encarar tais situações como um psicólogo no consultório: quando o paciente toma consciência da sua situação por si só, o processo de análise realmente acontece. Assim, entender algo em profundidade (ou seja, não apenas com a razão, mas com todo o seu ser) não deixa de ser um acontecimento propositivo. O que nós faremos com isso – aí é história para futuras crônicas.



* texto originalmente escrito no final de 2020.

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